A
Paixão segundo G.H.
Romance de
Clarice Lispector.
Argumento:
Um evento fortuito, como a morte de
uma barata, faz uma mulher experimentar todo o absurdo da existência. Aos
poucos, suas certezas são postas em suspenso e ela deverá reconstruir, a partir
de si mesma, o sentido da própria vida.
Em busca da autenticidade:
A obra de Clarice Lispector é uma
das mais desconcertantes realizações da literatura brasileira, a ponto de
pairar acima de sua tradição, ignorando o regionalismo triunfante e o romance
psicológico em curso. Seu
intimismo fenomenológico a filia mais imediatamente ao Noveau Roman francês, de Sartre e de Camus, o que não significa
dizer que fosse mera cópia daquilo que se escrevia além mar. Aliás, muito pelo
contrário. Combinam-se no seu fazer literário, uma radical intelectualização do
Eu e, paradoxalmente, um instinto
artístico que a permitia sentir toda a carga dramática da existência do homem
contemporâneo, ameaçado por ilusões narcísicas e materialistas num mundo a ele
indiferente.
Na realidade, a percepção deste
problema já havia sido integrada à literatura e à filosofia ocidental desde
meados do século XIX. O Deus metafísico e distante de Kant e de Hegel, mero
princípio racional, impregnou o posterior desenvolvimento da filosofia de um
mal-estar radical, fruto da consciência de um mundo cuja marca maior é a da
falta de finalidade e de sentido. Daí as diversas tentativas de se substituírem
o princípio Deus por outra coisa
qualquer, que viesse a remediar este vazio. O pessimismo de Schopenhauer é, de
certa maneira, fruto deste momento cultural; já o otimismo panteísta de um
Nietzsche coloca o homem (ou no caso, o Ubermensch)
no centro mesmo da especulação filosófica, descartando qualquer arremedo
metafísico que preenchesse a lacuna deixada pela ausência de um Deus provedor
que tudo vê e a tudo conduz com justiça.
Esta questão acabaria por tornar-se
o centro do debate filosófico europeu desde então (digo europeu, excluindo a
filosofia anglo-americana que trilhou caminhos diversos, rumando em direção à
filosofia da linguagem e ao neopositivismo), influenciando a produção literária
de maneira decisiva. Desde Kafka, Joyce, Döblin até os existencialistas
franceses (que fizeram de Kierkegaard o seu ícone literário), buscou-se a representação
desta orfandade do homem no mundo, ser marcado pela angústia e pelo desespero.
Clarice Lispector faz assim, parte desta tradição ocidental mais ampla, onde o
romance é o veículo por excelência da expressão do próprio absurdo da
existência. Assim, inaugura entre nós uma nova fase do romance filosófico: não
mais aquele que simplesmente buscava debater idéias, como Canaã de Graça Aranha ou O
Estrangeiro de Plínio Salgado. A sua verve filosófica é resultado de uma
busca, que põe em suspenso as certezas longamente aceitas sem reflexão e tenta
reconstruir o sentido da vida a partir da experiência individual.
O primeiro grande problema que se
afigura para a narradora é o da expressão. Neste caso, retornamos a um tema
clássico na obra de Clarice Lispector: a da distância entre o vivido e o
narrado, para óbvio prejuízo deste. É como se, ao materializar a experiência
vivida em palavras, perdesse a autora a singularidade do vivido, que deixa de
ter a “aura” do sentimento para obscurecer sob a penumbra da razão. Certamente,
a protagonista do romance vive uma experiência avassaladora do ponto de vista
individual, mas sua sensação desesperada é ainda mais brutal quando se vê
incapacitada de exorcizá-la pela linguagem. Daí, muito se fala que é preciso
ler Clarice pelas entrelinhas. Na realidade, a autora não pode nos falar
diretamente daquilo que vive, senão conduzir-nos aos problemas que ela sente e
por isso, somos arrancados de um certo conforto passivo de leitor para, com a
autora, reconstruir a vivência alheia.
Além do problema mesmo de uma linguagem
precária, está a questão da própria identidade do eu a todo momento confrontada com a miserabilidade da imagem da
barata esmagada contra a porta do armário. Esvai-se então, toda a projeção
social do indivíduo: mulher bem-situada na sociedade, confortavelmente
arranjada numa cobertura, cercada de amigos grã-finos e intelectuais. Todos os
vestígios de uma vida “civilizada”, socialmente triunfante e aceita, vão sendo
desfeitos: um esvaziamento do eu é colocado em atividade para, só então,
despida da imagem construída pelos outros, a mulher se reconstruir fundamentada
na descoberta da própria essência – que não é divina – mas radicalmente humana.
Há quem aponte a irrupção de Clarice
Lispector em nossa literatura como um divisor de águas. Infelizmente, o seu
legado não foi completamente assimilado por nossos escritores e creio que muito
tempo será levado para que a sua herança efetivamente passe a frutificar a
literatura brasileira. Mesmo tornando-se uma autora conhecida – apesar da clara
dificuldade da leitura de uma obra que além de complexa, é densa – a cultura
brasileira não estava, e nem está, pronta para as questões que levanta. A
simples questão de uma valorização do eu
não legitima a existência de uma literatura que a tenha incorporado. Assim, embora
o seu legado não venha a desaparecer – como atestam as diversas edições de sua
obra – é bem exagerada a afirmação de que tenhamos já a compreendido na sua
totalidade.
Por
que é um clássico brasileiro:
A inesgotabilidade aparente das
questões que suscita, aliada à uma rara intuição da experiência de mundo em que
vivemos, faz desta, uma escritora ímpar. Determinados problemas, já
profundamente analisados à luz da crítica literária, como o da insuficiência da
linguagem na representação da vida é apenas uma das dimensões mais visíveis do
seu fazer literário. Sob esta forma precária, pulsa uma pensadora radical, que
pretendeu fazer da literatura o caminho para a experiência da vida e daquilo
que nos é legitimamente humano, sem as aparências e fantasias em que estamos
enredados.
Obras
da autora:
Clarice
Lispector nasceu em Chechelnik, na Ucrânia em 1920 e morreu no Rio de Janeiro
em 1977. Publicou:
Romance: Perto do Coração Selvagem (1943), O Lustre (1943), A Cidade Sitiada
(1949), A Paixão segundo G.H. (1964),
Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969),
Água Viva (1973), A Hora da Estrela (1977), Um sopro de vida (1978).
Conto: Laços de Família (1960), A
Legião Estrangeira (1964), Felicidade
Clandestina (1971), Onde estivestes
de noite (1974), A Via Crucis do
Corpo (1974), A Bela e a Fera (1979).
Crônica: Para não esquecer (1978), A
Descoberta do Mundo (1984), Como
nasceram as estrelas (1987), Minhas
queridas (2007).
Infantil: A Mulher que matou os peixes (1968), A vida intima de Laura (1974), Quase
de Verdade (1978).